sábado, 7 de junho de 2014

A grande conspiração

O Sérgio (não mandou o sobrenome), neto do juiz de direito, Merolino Corrêa,  nos anos 30,  mandou uma história interessante protagonizada pelos seus avós, que gostavam de aprontar umas brincadeiras. Deve ser por isso que ele amou muito o Carmo, pois nós carmelitanos também gostamos de criar algumas. Agradecemos a contribuição. Pode mandar histórias, aqui é o seu espaço.
Também convidamos o Sérgio para ir ao Carmo um dia destes e beber também a água da Jacuba que encantou seus avós.




A GRANDE CONSPIRAÇÃO DO CARMO

OU (PARA FICAR MAIS CHIQUE)

THE GREAT CARMO CONSPIRACY

Essa história se passou nos anos 30 em Carmo do Rio Claro, quando as pessoas ainda se conheciam sem ser pelo Face e conversavam, jogavam e brincavam juntas; é, portanto, uma história de antigamente. 

Meu avô Merolino Corrêa era Juiz de Direito no Carmo, e apaixonado pela cidade. Vovô era um amazonense filho de imigrantes, um português e uma francesa; mas vovó era uma Martins da Costa Cruz de Os Martins da Costa estão em Minas desde o tempo da Colônia e das Sesmarias; e como toda boa família mineira certas características passam de avô para neto: todos são bons cavaleiros e pouco dados a demonstrar emoções; as mulheres são geralmente bonitas, mas todas elas têm em comum uma bela bunda e um gênio horroroso; a primeira sempre fez os homens esquecerem o segundo, até que seja tarde demais. Os homens são ou gênios ou bestas quadradas, sem muito meio-termo; e quase invariavelmente bons atiradores. Todos – homens e mulheres – gostam da terra, das plantas e dos bichos: mesmo os que se mudaram para a cidade grande há muito tempo ainda fazem questão de um pedaço de chão, pelo menos uma chácara. São todos bons dançarinos e animam uma festa como ninguém; por outro lado, não são muito chegados em igrejas. E adoram pregar peças nos outros – para a família, é algo entre uma ciência e uma Pregar peça todo mundo prega, mas as dos Martins da Costa isso vai muito além de trocar um copo de água por um de pinga ou vodca quando o freguês não está olhando: algumas populares antigamente eram trocar os cartuchos dos primos por de pólvora seca e gozar deles quando erravam os tiros; colocar azul de metileno no velho aquecedor da fazenda para ver alguém sair do banho pintado de azul, mandar uma célebre doceira de Leopoldina disfarçar cebolas em maçãs, plantar pimentas Habanero gigantes só para substituir por elas inofensivos pimentões. Quanto mais elaborado, melhor; e como o alvo preferido era geralmente alguém de quem se gostava, o ofendido preferia encarar tudo na esportiva – e tirar a forra na primeira oportunidade. 

Meus avós foram morar no Carmo quando ainda estavam recém casados e não tinham filhos (vovô tinha um do primeiro casamento, mas esse só aparecia nas férias), e não era incomum alguma parenta solteira ir de Cataguases até lá para passar um tempo. E digo “um tempo” e não “alguns dias” porque naquela época para se ir de Cataguases até o Carmo era complicadíssimo: trem até Belo Horizonte com muitas horas de viagem e baldeações no caminho, e idem de BH até o Carmo - uma viagem de dois ou três dias. 

A da vez era a Nair, vagamente prima da vovó mas “agregada” da família. “Agregado”- nada de pejorativo – era aquele parente ou meio parente que era filho único ou de pai ou mãe viúva (acho que era o caso dela) e que passava tanto tempo na casa dos primos que era considerado mais irmão do que primo (vovó tinha seis irmãos – cinco de sangue e um de criação - e eles eram para a época uma família “pequena”). Já devo ter visto algum retrato da Nair quando ela era moça, mas não me recordo: quando a conheci ela já tinha uns sessenta anos, e me lembro da pele pálida, dos traços bem feitos, e de uma certa elegância. Mas bonita mesmo ela nunca deve ter sido: para começar, era pequena demais – o eufemismo preferido naquele tempo era mignon, mas ela estava mais para mignonette – baixinha em excesso. Se bem me lembro, ela parecia um camundongo simpático, como a Minnie: risonha e tal, mas miniatura. 


A Nair era a noiva eterna do Jaime: bom moço, boa família e tal e coisa, filho de um pequeno farmacêutico em Cataguases, mas que ainda não tinha se acertado na vida, e ficava esperando um bom concurso para passar – Banco do Brasil ou Caixa Econômica – antes de se casar. Enquanto isso, ficava ajudando o pai na farmácia. Para falar a verdade, para quem conheceu o Jaime já sessentão, a impressão era de que ele era até demais para a Nair: não era nenhum Adônis, mas mesmo depois de velho era mais para alto, magrelo, ereto e bem posto, impecavelmente barbeado e penteado (bigodinho à la Clark Gable incluído), muito claro, sempre bem vestido (calça, paletó e colete, mesmo depois de aposentado), e cheio de perfumes e pós. 

Mas na época da nossa história a Nair já devia estar meio cansada de esperar, e devia também estar enchendo a paciência da minha avó, a quem não restou senão reagir como Martins da Costa, e parar de se fingir solidária, e tentar voltar a amiga à realidade com uma boa peça. E foi aí que minha avó propôs ao meu avô , provavelmente debaixo das cobertas e numa daquelas frias noites do Carmo (das quais meu avô, filho de dois pais vindos do frio – meu bisavô das Serras, minha bisavó dos Pirineus, mas nascido no Amazonas, - tanto gostava):

- E se a gente arrumasse um namorado para a Nair?
- Está louca, Carlota? Eu não sou alcoviteiro; além disso, a moça é 
comprometida...
- Não estou falando de um namorado de verdade, Merolino. Estou falando de alguém que a faça... cair na real. (Com mais do que certeza, minha avó não falou “cair na real”, porque não era uma expressão da época, nem vovó repetia impunemente coisas ouvidas na Rede Bobo. Mas que foi algo equivalente, foi.).Mas foi assim que daí a alguns dias – chavão sobre chavão e clichê sobre clichê – a Nair recebeu uma carta anônima de um admirador secreto, ou vice-versa. E a partir daí, a Grande Conspiração do Carmo começou.

A primeira carta em si era uma peça bem familiar: idealizada por minha avó e escrita pelo meu avô, era uma obra-prima de sincera admiração de um Cavalheiro do Sul de Minas – do tipo educado-no-Caraça- mas-que-fugiu-dos-estudos-para-assumir-as-terras-dos–pais - por uma etérea e vaporosa donzela da Zona da Mata. Mas que os artífices eram mestres, eram, e a carta enganava qualquer um: vovó era uma brincalhona nata, e vovô – que podia fazer o papel de sisudo Juiz do Carmo para os desavisados – ganhara a vida na Faculdade como repórter d’O Dia e d’A Noite, e como colaborador frequente do “Malho” e da “Careta”, as principais revistas humorísticas do Brasil de então. (E era, além disso, sobrinho do poeta Raimundo Corrêa – que às vezes assinava Correia para contrariar – e pai do jornalista Villas Boas Corrêa, e futuro avô de Marcos de Sá Corrêa: dificilmente um amador). 

A primeira pessoa do Carmo teve que ser recrutada desde logo: tanto a caligrafia do meu avô quanto da minha avó eram inconfundíveis – as precisas e floreadas letras redondas dele, os garranchos precisos dela – e até uma pessoa crédula como a Nair reconheceria logo a letra de um ou do outro. O jeito foi confidenciar a brincadeira aos carmenses, que aderiram O primeiro voluntário a transpor para o papel o personagem de namorado da Nair foi o Escrivão, mas esse não servia – perfeito demais. Uma amiga da vovó se ofereceu, mas meu avô recusou: a letra era demasiado feminina. No fim coube a um advogado local, de letra caprichada, o papel de transcrever as cartas de amor à interessada Nair. 

E as cartas foram se tornando mais e mais sinceras e íntimas, e a Nair- como era natural – começou a perguntar aos locais sobre o admirador Por aí todo o mundo no Carmo já sabia da história, mas demonstrando tanto senso de humor como discrição – duas qualidades das mais louváveis – acabou aderindo à brincadeira. E quando a Nair perguntava, as moças descreviam o Homem Ideal: rico, bonito, trabalhador, alqueires e mais alqueires de terra, religioso, bom filho e tal... E os homens concordavam: sujeito leal, respeitador... um pouco quieto e sonhador, mas daqueles para quem fio de barba é documento... E a Nair cada vez mais caída pelo misterioso carmense.

Carta vai, carta vem (sempre por portador, com a resposta indo invariavelmente acabar nas mãos do meu avô), a Nair resolve marcar um encontro – bem na praça do Carmo. Bom, era o fim do jogo: depois de levar um bolo nem alguém como a Nair iria persistir namorando por carta, ainda que em trinta e poucos. O jeito era deixá-la mofando um pouco, e depois mandar alguém para confessar a brincadeira. Foi então que um capiau passou em frente ao Forum, montado num cavalinho bem jeitoso e tentando vender uns cachos de banana – e meu avô teve uma ideia. Chamou o capiau, explicou a situação e ofereceu uma gorjeta para que ele se entendesse com a Nair. E nem precisava ter oferecido dinheiro, porque só por fazer um 
malfeito daqueles o capiau já se satisfazia: o sujeito se mostrou um ator afamado e consumado. Sem qualquer ensaio ou script se chegou na Nair todo humilde, de chapéu na mão e pedindo mil desculpas em nome do patrão imaginário: pois não é que alguém tinha posto fogo no cafezal, e o patrão não pudera vir ao encontro... Não, não fora numa fazenda daqui: fora numa das outras, lá em São Paulo... O patrão tivera que viajar às pressas... Mas então ele tinha mais de uma fazenda? Ora, umas cinco ou seis: uma no Carmo... duas no Guaxupé... mais umas duas ou três em São Paulo... Era tanta terra que ele nem sabia aonde. E mesmo na horinha de sair o patrão ficara desesperado em perder o encontro, e mandara ele para dar o recado, junto com um buquê de flores para a Dona Nair... Mas que ela perdoasse: ele fora com tanta pressa para passar a mensagem que o buquê acabou caindo do cavalo no caminho... Pelo amor de Deus, será que ela ia contar aquilo ao patrão? Ele não queria nem pensar no que podia acontecer a ele, já que o patrão gostava mais da Dona Nair mais do que qualquer coisa no mundo... Será que a Senhora não aceita pelo menos um cacho de bananas?

E foi assim que a Nair entrou em casa com um enorme cacho de bananas, como se fossem as mais belas rosas do mundo. E o namoro por correspondência continuou, agora com o noivo convenientemente distante
remexendo as cinzas do cafezal incendiado no interior de São Paulo.Mas um dia o tiro saiu pela culatra: vovó chegou em casa e pegou a Nair escrevendo uma longa e chorosa missiva. E não era para o namorado imaginário, mas para o noivo legítimo, o Jaime: que ele perdoasse, mas ela estava apaixonada por outra pessoa... A Nair podia ser cabeça de vento, mas era uma moça honesta: por mais que a vovó a dissuadisse ela acabou indo até o correio e entregando a carta, que foi devidamente selada, carimbada e postada. 

Vovó correu até o Forum e contou o ocorrido ao vovô, e lá se foram os dois para os Correios – a galope. Chegando lá vovô exigiu a carta, só para receber um sermão da encarregada da agência: será que ele, o Juiz de Direito, não sabia que violação de correspondência era crime? E foi preciso muita explicação e razão até que a carta fosse devolvida e devidamente rasgada em mil pedaços; mas os dois acabaram em concordar que a brincadeira fora longe demais. O óbvio seria contar tudo à Nair, mas a coisa já atingira tão grandes proporções que uma confissão implicaria em relações permanentemente rompidas – e minha avó podia ser brincalhona, mas amava a Nair como No fim foram os do Carmo que propuseram a solução: bom moço e tal, mas quase certamente portador de uma horrível doença contagiosa – 
lepra ou tuberculose, não me lembro. E a partir daí cada carmense que se 
encontrava com a Nair se encarregava de acrescentar seu copo d’água fria ao balde de gelo: rico, educado, boa família... Mas porque nenhuma carmense o queria? Mulheres bonitas ali não faltavam... Era a DOENÇA; se ela não se importasse em ser uma viúva em breve... Com um ou dois filhos para criar... 

Dentro de menos de um mês a Nair arrumou as malas e voltou para Cataguases; uns seis meses mais tarde o Jaime finalmente foi aprovado no Banco do Brasil, e os dois finalmente se casaram. Quando os conheci –
décadas mais tarde – eram um casal sem filhos, elegante e meio formal, e eu poderia jurar que a Nair um dia deixara alguém para trás: aquele carmense anônimo (e inexistente, mas nem ela sabia disso nem nunca veio a saber, porque ninguém teve a coragem de contar). 

Vovô teve três comarcas “de primeira”, como se dizia então: Tremedal (hoje Rio Verde), Palmas e Carmo do Rio Claro. Passou um ano nas duas primeiras, e mais de cinco no Carmo. Só quando minha avó engravidou pela segunda vez (a primeira filha morreu no parto) foi que ele criou coragem para abandonar o seu querido Carmo, e procurar sua promoção (o que para nós significa 10% a mais de salário, e não é de se desprezar). Nunca ouvi nada sobre o tempo dele no Tremedal, nem em Palmas: só no Carmo.

E o noivo imaginário? Gosto de pensar que ele ainda continua por aí, vendendo saúde e cada vez mais rico; e, como é imaginário, não envelheceu um só dia. E andou se atualizando: hoje ele não tem mais só belíssimos cavalos mangalarga, mas também uma coleção de caminhonetes e carros importados, além de um avião e um barco para passear em Furnas. 

E as mensagens para as donzelas desavisadas seguem agora por email, pelo Facebook, o Whatsapp e o Twitter. E ele continua fazendo sucesso. Eu mesmo só estive no Carmo uma vez, e de passagem: adorei a cidade e jurei voltar um dia com mais tempo, mas faltou oportunidade. Mas hoje – confesso – talvez seja um pouco de medo: se um carmense imaginário já consegue virar a cabeça de uma pessoa honesta e sensata, imagina o que uma morena-loura de carne e osso do Carmo pode fazer?"


Sérgio (neto de Merolino Corrêa, que foi juiz em Carmo do Rio Claro)


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