sábado, 17 de agosto de 2013

O ÚLTIMO REVEILLON

  As duas grandes mesas foram colocadas, uma ao lado da outra, na cozinha do casarão, na Fazenda Água Limpa. Ares de 1.900, mobiliário de época, museu de histórias. As mulheres decidiram: a festa será na cozinha. Escreveram uma faixa: "Sala de visita de mineiro. Alguém sentiu falta da sala?
A família - avós, pais, filhos, sobrinhos,primos, amigos, agregados, em volta da mesa. E foi na cozinha, numa noite memorável e inesquecível, que ele passou o seu último reveillon, cercado pela família. 

Meu primo, Tom Figueireiro, que nos deixou.

Depois de andar o mundo, de galgar os maiores degraus da Publicidade, ser premiado. Quem se lembra do cotonete que morria de cócegas, com esta propaganda, ele ganhou prêmio internacional. Casou, teve filhos, netos. E, aos 70 anos, voltou às origens. Passou a ir ao Carmo, para nossa alegria. Pele clara, olhos azuis e um sorriso iluminado, lembrava o seu pai,  Coronel Job Figueiredo, irmão da Vó Alice. Job Figueiredo é nome de rua em Campinhas, onde foi o fundador da hípica.

Um primo "idoso", mas jovem, inteligente, engraçado. Foi o brilho do carnaval de 2011, quando nos reuníamos no Bar do Caruncho, que virou o reduto dos músicos. Ele tocava cavaquinho, mas não nos deu uma canja, infelizmente. Ele no meio, ao seu redor, reunia-se a família, tios e sobrinhos para ouvir os seus casos, muito engraçados.

Neste dia, ele comentou:
Depois de velho, deixei de ser perigoso. Com essa barba, na ditadura eu era um perigo! Parado em todas as blitz. Hoje, vejo uma blitz, faço cara de mau, desta vez eles me mandarão parar, eles me mandam passar. Primo, disse-lhe, experimenta ficar nu no aeroporto e você será preso. Que nada, não adianta, prima, eles vão perguntar cadê o remédio de Alzheimer do velhinho.

Ainda no Bar do Caruncho, ele reclamou para os sobrinhos:
- Velho é invisível. Já entrei no elevador com uma mocinha e ela mal me viu. Uma delas quase trombou comigo na praia. Não adianta. Velho é invisível.
Contestei veementemente: "Primo, posso lhe garantir que você ainda é bem visível!
Porque conservava a sedução que o levou, na juventude a ser chamado de GaTom.

Policena de Jesus

Ele teve no Carmo uma vivência transcendental. Era ateu convicto. Perdeu seus documentos e passou a dar baixa nos cartões, preocupado. Encontrou com a minha irmã, Tata, que pegou em suas mãos e disse: vamos rezar para Policena. Policena é a mais nova santa da família. Ela foi descoberta em uma caminhada de minhas irmãs, no Caminho da Fé. Encontraram uma galeria de santos negros. Entre eles, Policena de Jesus. 
Rezaram sua oração: Das profundezas do escondido / Policema trás a luz /  Encontra o objeto perdido / Policema é de Jesus. Estavam na esquina da Madrinha Tata. No outro dia, ali mesmo naquela esquina, um homem vira a esquina, depara-se com ele e grita. Você é jornalista? É Tom Figueiredo? Estou à sua procura desde ontem. Aqui seus documentos. Esta experiência rendeu ao ateu até um artigo para o Expresso Carmelitano. Depois comentou, ele me encontrou na esquina que fizemos a oração e era negro. E o taxista disse que nunca vira aquela esquina para ir para casa.

Um noite inesquecivel!

Depois, o vi mais uma vez no Tião, na Pousada da Mavi, quando do lançamento do livro Genealogia da Família Vilela, de minha irmã, Ana Maria Vilela Soares, grande amiga do Tom. Havia passado por um enfarte, estava de sobreaviso, por isto, viajando pouco. Quando foi no fim do ano, ficamos sabendo que ele passaria o reveillon conosco. Ficamos super felizes.  Eu faço um oráculo com frases e coloquei pedacinhos da história da família. Ali rememoramos os tios, os avós, os ancestrais. Depois, fomos à hortinha da Valerinha e pegamos folhas de alecrim, mirra, hortelã, orégano, curry etc e fizemos um festival de aromas, passando as folhas pela mesa. Não me lembro com qual oráculo o meu primo saiu, disse depois que analisaria para compreender o significado, mas que guardaria a caixinha em um lugar especial em sua casa.

Vinho rolando, ele declarou: o médico disse que posso beber de vez em quando. Elegeu aquele dia e, boêmio de uma vida, se embriagou na delícia daquela noite. Contou casos, riu, falou poemas no reveillon da Fazenda Água Limpa. Beto, meu sobrinho, puxou no violão o hino da família: viver e não ter a vergonha de ser feliz....Então, solenemente, ele retirou uma caixinha do bolso e disse: agora vou fazer uma coisa que há muito tempo não faço, eu mereço. Tirou um fino charuto e tragou com uma expressão de supremo prazer. Ele que tanto amou os prazeres da vida! A caixinha vazia, ele me deu.

Vai com Deus!

Agora, a Carla me conta ao telefone. Ele foi embora. Seu e-mail se calou, onde trocamos contos, conversas, considerações. Silêncio no Linkedin...Antes de partir, há cerca de dois anos, lançou um livro, O Perseguidor. Achava seu jeito de escrever muito parecido com o meu. 

No natal de 2012, não sabíamos que estávamos nos despedindo da prima Maria Alice. Neste reveillon, de Tom Figueiredo. Compartilhamos com ele o melhor de Minas, a sagrada mesa de alimentos, o amor da família, os causos, as músicas, o fogão de lenha, as histórias de todos nós naquele casarão, que também fez parte da sua infância, no tempo do Joaquim, meu irmão. 

Ao final, ele voltou às origens. E nós, tivemos a oportunidade de conviver com ele. Seu sorriso ficará eternamente nas nossas lembranças. Que Deus o tenha! Meus sinceros sentimentos!
Tom Figueiredo com Tião da Lola. Eles dois passaram a noite acordados e conversando  neste reveillon inesquecível!


Abaixo, o artigo que o primo Tom, saudosíssimo, publicou no Expresso depois da experiência da Policena:

Identidade perdida (e reencontrada)

         Posso dizer que em Carmo do Rio Claro passei o Carnaval mais feliz de minha vida que, em 2010, tem o rastro de uma longa estrada. Não, não foi na avenida. Explico: enquanto se brincava no festejo oficial, primos e amigos nos reuníamos no bar do Caruncho (olha o comercial!). Nunca vi tantos talentos à volta de consagrados sambas, carinho e cerveja. Faltavam instrumentos. Não me atrevi, é lógico, ao cavaquinho. Que eu presumia tocar,  até aquelas noites mágicas.
         Mas há outras razões para a felicidade. Relato só uma que, de longe, vale por todas, pelo seu sortilégio. Se me permitem, foi quase uma epifania.
         Vinha eu com meu primo Dito e familiares da fazenda Água Limpa. Voltava de um banho de memórias, pura dádiva de meus parentes que sabem o quanto preciso delas.
         Deixo o carro diante do hotel. Ao quarto e, súbito, o pânico! Onde foi parar a carteira com os documentos que a vida vai botando no bolso da gente? O primo Dito, convocado ao telefone, revira o carro do avesso, por dentro e por fora. Nem a Polícia Federal faria melhor. Nada!
         Aflito, sou amparado pela prima Ana Maria Soares que consegue
bloquear os cartões perdidos. Devo a ela a compreensão e a conta do
telefone. 
         Enfim, é a amargura dos  que conhecem os que perderam seus documentos. Terei de fazer de novo o serviço militar? Nascer de novo, talvez?
         Benedito me acalma. No dia seguinte ao infausto, ele me acompanha
em um périplo pela burocracia da polícia. Meu primo, que mais do que um sábio é um homem de bem, consegue o recorde mundial de obter um BO em plena terça-feira de carnaval. Milagre!
         De posse do documento, sinto-me de novo um cidadão. De segunda classe, é verdade. Mas ao menos poderei entrar em um ônibus para São Paulo.
         Mas o milagre verdadeiro ainda estava por vir. Aqui me permitam uma breve digressão, para o entendimento do que segue.  Meu querido primo, Joaquim José, adoece. Sua irmã, Tata, interrompe a peregrinação
que fazia a pé e volta ao Carmo.
         Ela nos relata que conheceu, a partir de Ouro Fino, um trecho
do trajeto dedicado a beatos negros, pontilhado por homenagens. A
primeira é dedicada à negra Policema (quem teria sido?). Em sua modesta ermida de pedra está gravada a quadra: Das profundezas do escondido / Policema trás a luz /  Encontra o objeto perdido / Policema é de Jesus.
Tata, generosa, diz que me fará esta prece.
         À noite, indo para a casa de Ana Maria, bem em diagonal à casa de
Tata,           pára ao meu lado um belo carro. O motorista, profissional tranqüilo, põe a cabeça para fora do lado do passageiro de me pergunta: “O senhor perdeu uma carteira?” Não tive a dignidade de desmaiar. Em seguida diz: “Entre que o levo até a sua carteira”.
         Um percurso rápido até um bar, em uma tal rua da Cobra.
Diante dele, o motorista chama um amigo: “ O jornalista está aqui!” Geraldo, esse é o seu nome, havia gravado o meu rosto na foto de minha carteira funcional. Os faróis do carro haviam, felizmente, me delatado.
         Gentil, alma elegante, Geraldo me devolve (com a carteira!) bem à frente da casa de Ana Maria. Ainda tem tempo para me dizer que habitualmente não viraria à direita, uma vez que mora perto do cemitério. Seguir em frente seria o mais lógico. Mas dobrou à direita, “só por dobrar”, segundo ele. Será mesmo?
         Só me resta ir para o bar do Caruncho e conter o choro. Que lindo Carnaval, graças a gente como Tata, Geraldo, Dito, Ana Maria e tantos outros!

                            Antonio José de Figueiredo
          Paulistano do Brás e carmelitano de coração, se me aceitarem.
   
Nós não só o aceitamos, como aprendemos também a amá-lo.




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