domingo, 7 de setembro de 2014

Casos do Coró

Do Burro, de meu pai, do Dourado e do Miguel


"Os equinos adquirem hábitos e conseguem reproduzi-los por anos e anos seguidos. Quem se lembra daquele Burro que puxava a carroça de carne do matadouro no Carmo? Aquela carroça de chapa galvanizada e que parava em todos os açougues e fazia as entregas? Todos se impressionavam na época em como o Burro parava sozinho nos lugares, sem necessidade do carroceiro intervir. Foi a partir daquele Burro que comecei a admirar esses animais. Nos primeiros anos como produtor rural, meu pai me ajudava na pequena fazenda que possuíamos no Carmo. Ele adorava cavalos e nasceu com o dom de conhecê-los, saber cavalgá-los e entendê-los. Digo que é um dom, pois assim considero. Há algo de sublime, superação e de diferenciação em saber lidar com cavalos. No filme Troia, o narrador da história ao tentar situar a época em que viveu, cita como referência “...Heitor, domador de cavalos...” e eu acho que fez isso por também entender que realmente essas pessoas receberam um dom.

Tãozinho, pai do Coró.
 Meu pai teve 12 filhos e somente um soube assimilar esse amor por esses animais e esse filho também foi agraciado por essa benção de ter empatia com eles. Meu pai certa vez comprou um cavalo do Paulo Automovinho – Paulo Melo, irmão de Pedro Antônio Melo (farmacêutico). O cavalo era muito bonito – meu pai sabia escolhê-los – era marchador e não tinha defeitos aparentes. Sabendo que ele não tinha dinheiro na época para comprar o cavalo, insisti para saber como adquiriu e em que condições o comprou. Ele não queria responder, era bastante autoritário e não gostava que interferíssemos em suas negociações, mas eu continuei insistindo e ele me disse que havia combinado com Paulo Automovinho que pagaria em “algumas” parcelas. Sabendo que o Paulo cobrava juros e que meu pai nessa época só recebia o salário de sua aposentadoria, que era pequena, e que minha mãe sempre despendia grande energia com essas inconsequências dele, chamei meu pai para irmos no Paulo e pagar imediatamente a dívida. Ele relutou, disse que eu não tinha que entrar nos negócios dele, mas acabou concordando e quitamos o valor com o Paulo. Ele disse então que o cavalo era meu, pois eu o paguei, mas que só poderia vendê-lo quando ele, meu pai, morresse. Meu pai deu o nome “Dourado” ao cavalo, pois ele era inteiramente amarelo, ou baio palha ou outra cor, mas realmente lembrava algo dourado mesmo. Nunca entendi bem as cores que os entendidos de cavalo as definem. Por exemplo, se o cavalo é quase preto, chamam de castanho, cinza é queimado, vermelho é alazão, tons palhas é baio, depois vem rosilho, gateado, tordilho e assim por diante. Somente as cores preta e branca recebem esses mesmos nomes. O Dourado era um cavalo manso, dócil, resistente e muito saudável. Foi a primeira experiência equestre de muitos sobrinhos, de irmãos, de filhos de amigos e de minhas filhas. Quando já velho e cansado, meu irmão sugeriu que o levássemos para um bom pasto e o deixássemos lá. Ficou conosco até morrer de velhice, aos 22 anos. Certa época nós o treinamos para puxar carroça. Ele foi o motor que durante anos entregou leite nas ruas do bairro Acampamento no Carmo, puxou muitas carroças de capim e levou também muito leite na antiga Coopercarmo. 
Paulo Ferreira, conhecido por Coró, um excelente contador de casos.

Certa vez, quando ainda vendíamos leite no Acampamento, eu pedi ao Miguel, nosso caseiro e retireiro, que arreasse o Dourado na carroça que eu iria na cidade com ele. Saímos do sítio, Dourado e eu, e seguimos para o Carmo. Quando passávamos pelo Acampamento, em toda porta de bar (havia 3 bares na rua principal) o Dourado insistia em tentar parar. Eu, inexperiente com cavalos, não entendia porque ele tentava tão forte e teimosamente, fazer aquelas paradas. Pensei que ele havia adquirido algum defeito incorrigível. Mas consegui ir até a cidade e voltar pelo mesmo caminho. Também na volta a mesma insistência do Dourado em tentar parar na porta dos botecos. Fui falar com o treinador de cavalos que o havia treinado. Ele morava em frente ao Hospital do Carmo. Disse a ele que o Dourado estava apresentando esse defeito de não obedecer às rédeas e que ficava tentando parar em alguns lugares. Daí ele me perguntou: “Esses lugares que ele tenta parar, por acaso, são os botecos do Acampamento?”. Eu respondi surpreso que sim e não imaginava como ele poderia ter “adivinhado” os locais onde o Dourado tentava parar. Daí ele respondeu: “Tá explicado, é que quando o Miguel vem entregar o leite, ele toma 6 pingas. Uma em cada boteco na vinda e outra em cada boteco na volta (segundo ele para abrir o apetite para o almoço), assim o Dourado se acostumou a parar lá.”. Não tive outra alternativa senão aceitar que estava mesmo explicado o “defeito” do Dourado".

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