Aconteceu nos anos 70
Quanto mais o ônibus anda, mais Clio vai ficando de coração leve, vai ficando longe de Dona Valdevina. Vai para São Paulo e se enche de orgulho. Um paulista havia contado a ela que ele não conhecia toda a cidade. Mas como, ela não conseguia entender um cidadão que não conhece toda a sua cidade. Vinha da pequena Senhora do Carmo. Baldeou nas Terras de Alfenas e sentou-se na poltrona, do lado da janela, que abriu facilmente. Abriu o biscoito Waffer e começou a comer a viagem. A única cidade grande que tinha conhecido era o Rio de Janeiro. Ela, Claus e Callas reinaram em Ipanema, na tia Neuza. Namoravam os maiores gatos da Barão da Torre. Puxou conversa com o vizinho de banco, um homem de 35 anos. Contou tudo da sua vida e especulou tudo da vida dele e conversaram de tudo e tanto nas 8 horas de viagem. Clio fumou sem parar, naquele tempo ainda se podia fumar no ônibus e comeu waffer. Sei que lá pelas 7 da manhã, chegando na cidade, o assunto já estava nas estrelas:
- Eu sou capricórnio e você?
- Então ta, boa sorte. Seu nome mesmo?
Ela era pequena diante de tantos prédios altos e tantas pessoas, como formigas, depois contaria à mãe. Foi até o táxi puxando a mala e disse o endereço e o trajeto que havia decorado, dizia-se que os táxis rodavam com as moças do interior que ali chegavam. Subiu dois andares até a casa de Perpétua, sua prima e tia Santa, que não poderia ter outro nome. Ficaria ali até encontrarem emprego e alugarem um apartamento. Claus e Callas já estavam lá. Willie Nelson cantava enchendo a sala de uma cadência de interior. Era o primo Gordo, que riu até as orelhas para elas. E que Clio nunca mais viu, ele partiu cedo para a terra do nunca mais.
O coração pula dentro do corpo. Callas fala: amanhã cedo vamos procurar emprego. E começou a saga de agência
Foi Callas que sugeriu a Clio, você precisa escrever essa história. Era preciso falar dos sótãos das casas do Bexiga onde um dia Clio amou um homem, num tempo em que o amor era livre, decretado estava. Noite que terminou tomando café com creme no aeroporto. Ele a chamou de mulher e com ele foi para Vila Rica. As três irmãs – e os recém amigos de São Paulo, judeus ricos dos Jardins, universitários da FAAP. Cada um dormindo com o seu namorado, fumando cigarrilha San James e andando pelas neblinas de Ouro Preto. Estava decretado o amor livre. Acabava de conhecer Felini e já estava dentro de suas ruas, naquela cena verdadeiramente cinematográfica e que se gravaria em Clio pelo resto da sua vida. As neblinas de Vila Rica. Eles eram 10 e chegaram à noite
Elas começavam a noite no Riviera. Sim, o Riviera da música. Ali freqüentavam. Dali, ficavam sabendo o endereço de alguma festa. Ser bicão era liberado
Então, Lolô foi iniciando Clio na leitura dos livros ... Gaiarsa, Sartre, poesias de Fernando Pessoa... Assistu a filmes na universidade e conheceu Zefireli, Antonioni, Polansky, Felini...A universidade era inflamada de cultura, havia uma fome no ar, uma vontade de transformar o mundo, uma fé, uma esperança de que a partir deles tudo ia ser diferente.
A avenida Paulista era muito mais vazia, tranqüila de se caminhar. Logo Maria Callas descobre que a clínica de reprodução fazia abortos e saiu de lá. As três costumavam se encontrar na Praça da República na hora do almoço. Clio comia o lanche que ganhava na empresa ou, então, comprava com as irmãs três pastéis na Pastelaria portuguesa. As conversas eram tantas, tantas as novidades, que elas mais falavam que comiam e se alimentavam da novidade que a cidade oferecia. Tom zé cantava São São Paulo, minha dor. São São Paulo meu amor...
O quitinete das três é uma bagunça, elas não aprenderam a trabalhar, a avó, Dona Hortênsia, dizia para Dona Valdevina, deixa, quando precisar elas trabalham. Mas, nos primeiros dias, a preguiça vencia. Então, a mãe ia, a cada três meses, e arrumava a casa, lavava as roupas, fazia comida gostosa. Era um paraíso, chegar em casa e achar a casa brilhando, a presença de Dona Valdevina reinando sobre a limpeza e a sua comida inesquecível. Então, as três levavam os amigos para almoçar ali e conhecer a mãe. Minas Gerais morou naquele quitinete naqueles dias e uma matrona portuguesa, com certeza, que enchia nossas mesas de bolos. Os corredores do Edifício Rampinha sentiram pela primeira vez o cheirinho do autêntico bolo de fubá,
Daqui a pouco vou dormir embalada por essa estória que me é tão familiar!
ResponderExcluirSaudades de um tempo em que a descoberta do mundo era feita "in loco", sem câmeras, televisão ou redes sociais. Tempo em que viver intensamente era quase uma ordem.