sábado, 15 de setembro de 2012

Vamos nos responsabilizar por nossos loucos





Esta semana eu tive uma experiência diferente. Impactante. Visitei um centro de atenção em saúde mental em Belo Horizonte. Na clínica anterior em que estavam, que foi fechada, viviam em condições degradantes. Ficaram 30 anos sem se ver no espelho, sem ver o mundo, sem ver televisão, sem ouvir rádio. Alguns chegaram ali jovens e ali envelheceram, com certeza sem um tratamento adequado. Famílias ali abandonaram seus filhos há décadas, suas mães e avós com distúrbios mentais. Talvez alguns tenham entrado ainda com possibilidade de tratamento. 

Mas o que se vê hoje são olhos perdidos no nada, choros, uma mulher andava pelo corredor dizendo eu quero sair daqui, eu quero sair daqui. Mas o amor começa a entrar naquele lugar. A cidadania começa a acontecer. São levados a passear pela rua, a andar na praça, a tomar sorvete. A ver enfim a vida de novo. Formaram nestes longos anos uma família. Um deles é mais lúcido e ajudou dizendo o nome dos outros, que já nem se lembram mais. Uma vovó se ajeitou para a foto e deu um largo sorriso. Ela tem importância. Ela é alguém.  Eles são fotografados para o prontuário, tem nome e um rosto, que também ficará pendurado em sua cama. Há homens e mulheres que perderam-se tanto, que ficam nus; alguns arrastam-se pelo chão. Enfermeiros e médicos se enchem de compaixão para acolher aquele pequeno fiapo do mundo, as pessoas esquecidas da sociedade. Agora, serão preparados, cuidados, acolhidos, para depois irem para as casas de atenção à saúde mental.  

Aí, eu me lembrei do Carmo e de nossos queridos loucos. Os antigos e os novos que andam pela rua enchendo de graça e diferença. Que mal havia em Belinha, que ela tivesse resolvido rodar em torno dos postes, andar descendo e subindo o passeio ou que de vez em quando rodasse a baiana, desse círculos com suas saias rodadas. Que bom era estar na rua e ouvir o canto do Daniel. Quem mal havia no conto do Daniel? Oleroolerooolero um dum!
RRRReceba as flores que lhe dou. Em cada flor um beijo meu ...

Tem também os bêbados personagens, como a Maria, que era desbocada. Para escândalos de alguns repetia: Beijá é mió que metê! Ou "Ai que vontade beijar labos de homem!" Um dia passou lá em casa e gritou à porta: Nivarda, tem Sulino? Larguei da pinga peguei com o Sulino! Eu a atendi àquele dia. Por sorte, tínhamos Sulino e o servi para a Maria, que rumou pros lados do Bairro do Rosário dizendo: - Vou pra lá e quero voltar assim - e deu cambaleadas. Quem mal Maria fazia a não ser a si mesma? E o Parmera chuta! E o Modesto cadê o resto?

A Fatinha, minha irmã, escreveu um texto, que vou localizar, em que ela dizia que não sabia o que os loucos viam na Casa da Nivalda. Um dia, chegou e pegou o Delegado dormindo no sofá da sala de entrada. De outra, era a Lúcia preta dormindo na porta. 

E a nossa Dona Olímpia (famoso personagem das ruas de Ouro Preto), a Gerarda, cujo peito era um altar de medalhinhas de santo. Que mal fazia a Gerarda, a não ser dar acesso de vez em quando em nossa casa, onde deixávamos sempre uma caneca de leite pra Gerarda, que ia lá todos os dias.Nos meus tempos de criança, o terror era a Maria Cachucha. Ela andava com um bornal, dizia-se que ela carregava um rato morto dentro dele. E o Antônio Zacarias que de doido não tinha nada. Mas de presença de espírito, tudo.
Que mal fez Antônio Zacarias para a sociedade?

Lembro-me também de alguns loucos varridos que viviam trancados em um quarto fora do hospital. A família Figueiredo era chamada de família de loucos, muitos, loucos de lucidez, no meu ponto de vista. Extravagantes, ousados, irreverentes. Destaquei dos Casos do Job recortes de um personagem interessante e "louco": Eustáquio Figueiredo. A Vó Corina dizia que ele deve ter sido trocado na pia batismal. E também flashes de lucidez de Antônio Zacarias. Hoje ainda se vê pela rua o Paulão emprestando dinheiro para o Antônio Carlos, trocando cheques, falando sozinho e andando o dia inteiro pelas ruas da cidade. Que mal o Paulão faz?


Figueiredo é família de loucos. Venham comigo lá na década de 30.Eustáquio Figueiredo andava trajado de linho branco, sapatos de duas cores, suspensórios. Com a maior naturalidade, à hora do almoço, colocava a sua mesa no passeio e tranquilamente almoçava tomando vinho, como se estivesse em Paris.

Araci, sua filha,  morreu no hospício, em Barbacena. Quando o carro ia saindo para levá-la à internação, ela perguntou para a Corina, sua irmã:
- Corina, e ocê quando é que vai?
Araci morreu no hospício.


Vi um documentário "Loucos por Sanidade" que fala do antigo hospício de Barbacena, onde os pacientes eram tratados a choque. É chamado até do campo de concentração brasileiro. Para lá, iam não só loucos, mas os que deviam ser apartados da sociedade, políticos indesejáveis, mocinhas que envergonhavam as famílias. Eu acredito que as famílias deveriam se responsabilizar pelos seus "loucos", a sociedade deveria aceitá-los pelas ruas, os que não são violentos. E os responsáveis pelo cuidados deles, que os tratem com cidadania e respeito humano.

Essa da Represa é ótima!

Não estou falando da represa de Furnas. Estou falando da nossa Represa, a Olívia que de dia lavava roupas e era séria e, à noite, tomava umas pinguinhas e soltava o verbo e o seu lado espirituoso.
Quando o Padre Marcelo desmanchou a igreja, levava a Nossa Senhora da Aparecida para andar nas casas. Pulava as casas duvidosas (quando a mulher não procedia bem). Olívia estava descendo a rua, quando uma mulher começou a gritar: - Cachaceira! Num repente, retrucou:
- Mas a santa tá lá em casa!



Antônio Zacarias

  Quem se lembra do Antônio Zacarias? Ele ficou cego e foi morar no asilo. Gostava de uma pinguinha. Numa das saudosas festas juninas que aconteciam no hospital, alguém perguntou se ele queria um quentão. Ele retrucou:
- Dá pra me trazer um mais simplizinho?

Ele fazia versinhos. Uma vez a Noeli vinha andando perto do correio, quando viu o Antônio Zacarias. Pediu: faz um versinho para mim. Ele fez:
"Atravessei o rio, no fundo de uma caneca.Senta aqui no meu colo, cinturinha de boneca"
Uma mulher feia também resolveu pedir um verso. Antônio Zacarias fez:
"Atravessei o rio, no fundo de uma cabaça, onde tem mulher bonita, mulher feia não tem graça!"

A propósito, você que me acompanha, alguém tem fotos de alguns destes personagens carmelitanos?

Dona Olímpia afirmava que conhecera Tiradentes. Dependurava cartões e lembranças de turistas em sua roupa. Tina coleção de chapéus, presenteados por turistas.  Em homenagens aos loucos de lucidez, aos  que pensam diferente, deixo aqui a carta de Sinha Olímpia.




Meu nome é Olympia Angélica de Almeida Cotta. Sou filha do Coronel  José Gomes de Almeida Cotta e de Dona Amélia Carneiro Leão, Marquesa  do Paraná. Eu nasci em Santa Rita Durão mas o destino infernal me carregou pra Vila Rica. Me carregou para penar e sofrer com esse povo. Eu nasci no ano de 1889. Sinceridade, senhora das Mercês, compadecei de mim. Misericórdia. Socorro! Amparai-me. Livra-me dos inimigos. •Amor tive um só. Uma vez, detrás da rótula do sobrado número 16, onde morava, meu coração bateu mais forte porque meu pretendente predileto vinha batendo saltos na calçada. Ele trazia flores, mas não me casei com ele nem com ninguém.  Meu pai, o coronel José Gomes de Almeida Cotta disse que ele não era homem para mim já que o senhor pode saber e assuntar por aí que eu sou descendente do poeta Santa Rita Durão, que venho de uma linhagem de nobres e não poderia nunca ter por esposo um republicano. Um daqueles que maquinam a derrubada da nobreza. Digo a você, meu jovem: Era um pretendente por demais belo. Me deu um abacate, um dia. Não poderia me ter e me deu um abacate. Um abacate amargo. Ó, ainda sinto seu fel na boca até hoje. O meu último homem foi Juscelino. Era meu noivo mas nunca dei esperanças. Vinha aqui em casa me cortejar, mas amores e abacates nunca mais. Vou ficando por aqui, meu jovem. Se for do seu conforme, me dê uma moeda. Se não, me dê um papel de bala, um toco de cigarro ou qualquercoisa que o senhor achar que sou merecedora. Meu mundo carrego aqui. Minhas riquezas são vossos presentes. Que Deus seja louvado! Não há de faltar chapéu para a minha cabeça, ainda que eu viva mais 20 anos.”
 “Lá vai Ouro Preto embora, todos bebem e ninguém chora…” Sinhá Olimpia




A donzela Sinhá Olímpia.
Ela parecia ter saído dos livros de história e conserva intactos vestígios de 1.800.
Andada sempre com uma bengala e chapéu. Pedia aos visitantes guimbas de cigarro e, então contava histórias de Ouro Preto.







Um comentário:

  1. Acabei de conhecer o blog, encontrei por acaso mas já me identifiquei muito com as postagens!!! Parabéns! Continuarei lendo e acompanhando!

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