segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nossos "loucos"

O texto é da minha irmã, Fatinha, muito bom. Os "loucos" era naturalmente acolhidos pela cidade. Em minha casa, então...

DR. MONTE RAZO 55

BELINHA este era seu nome, diziam que havia sido bela, quando moça a mais bela.

Quando a via agachada junto a um poste com seu surrado casaco que lhe cobria todo o corpo, lembrava-me sempre que havia sido bela, talvez por isto o nome Belinha.
Mas era o mistério que me ligava a ela. Para mim Belinha era alguém que planava sobre cidade, não morava, não comia e com certeza mijava debaixo daquele casaco. Sua voz nunca ouvi, seu cabelo, me lembro de um castanho liso talvez enrolado em um coque, acocorada sempre com o olhar perdido em um tempo qualquer.
Quando deixou de ser bela? Não sei.
Misteriosa belinha que até hoje povoa o meu imaginário, procurei respostas? Nunca. Belinha não tinha respostas, os mistérios são assim. Medo, curiosidade, fascinação rodeavam Belinha acocorada junto ao poste.
Volto da escola faminta, entro em casa, ainda sinto o frescor das tábuas de madeira, a liberdade daquele labirinto de esquerdas e direitas para se chegar à cozinha. Passo pela sala de mesa e cadeiras pintadas de verde, atravesso a porta da cozinha, e lá esta ela, acocorada em um canto , encostada a parede sobre o brilho do piso de vermelhão.
Meu Deus, o mistério entrou pela minha porta, sentou-se no meu chão, absorve o cheiro da comida da Elisa e aguarda o que instintivamente já sabia, um prato de comida lhe seria servido. Sem perguntas, sem interrogações, sem respostas. E assim se sucedeu, Belinha comeu e partiu no seu silêncio coberto pelo seu casaco de lã.
Voltaria muitas vezes, dividiríamos com ela nossa comida, comeríamos observando-a com um sentimento no coração que só Belinha despertava. Que só as belas despertam.
O Carmo de minha infância era assim, povoado por figuras que no meu entender de garota, não pertenciam a este mundo, hoje vejo que pertenciam sim, pertenciam ao mundo daquela Carmo do Rio Claro.
O Delegado, o Bráz, Seu Chiquinho, o cego, que morava no fundo da casa paroquial.
Seu Chiquinho, assim como Belinha, aparecia para almoçar.


Dele me lembro da voz, forte e também da um pedaço de pau que lhe servia de bengala. Mas seu Chiquinho não era Belinha, menos misterioso, endereço fixo, respeitado, podia frequentar as casas de família. Exigente, dia de almoço de seu Chiquinho, a comida tinha que ser especial, não gostava de ser recebido sem certa pompa. Pompa que naquele tempo significavam macarrão e frango, comida de domingo, de visita importante.
O Delegado também teve sua passagem, de novo voltando da escola, lá o encontro, dormindo no sofá da minha casa, se recuperando de mais uma de suas bebedeiras.Lembreo-me também de uma negra alta e esguia que morava perto da igrejinha de Nosso Senhor dos Passos, um dia quente de muito sol, fui impossibilitada de entrar em casa pois ela estava caída na porta num sono profundo, disseram que havia bebido. (a Lúcia)
Geralda, odiada pela minha cadela Pit, não Bull, vira lata mesmo. Ia tomar seu caneco de leite todos os dias, e uma vez teve um ataque epilético na sala. Já havia visto outros na rua. Dava-me um pouco de nojo, não maior que a curiosidade por este mundo habitado por pessoas tão impressionantemente fascinantes.
O que levava estas pessoas a entrarem em minha casa, será o fato de estar em uma rua perto da praça, perto da igreja, será o fato de sua porta estar sempre aberta?
O que pensou Belinha quando sentiu fome e escolheu aquela casa para entrar e nenhuma outra da rua? Que fascínio esta casa exerceu sobre o delegado para que se sentisse tão a vontade a ponto de dormir no sofá?
Uma casa é uma casa, feita de tijolos, madeira e cimento, coberta de telhas, umas maiores, outras menores, umas bem melhores que as outras. Mas é quem as habita que as tornam especiais, que lhe enchem de luz, de perfume, que a fazem pulsar como um coração.
São três mulheres que se tornaram o coração desta casa e o fez tão grande que o seu pulsar era ouvido por todos, pelos loucos, pelos bêbados, pelos jovens, por todos que conseguiam ouvir.
Atraindo-os como uma aranha atrai um inseto para a sua teia. Mas quando enveredado nesta teia não eram digeridos por ela, eram alimentados. Recebiam ali o que não se encontra em qualquer lugar, o mais puro amor e generosidade.
Vivi ali os mais felizes anos da minha vida, carrego comigo lembranças preciosas.
Na Dr. Monte Raso 55 com ações e gestos me ensinaram o que é o respeito, o carinho, a aceitar o mistério, o diferente, com uma tocante simplicidade.
D. Alice. Nivalda e Elisa, de algumas sou parte da carne, de outra sou parte do espírito.
Vocês estão em mim pois sou quem me ensinaram a ser. Obrigada.
A vocês que agora estão no céu e aos que ainda estão na terra e nesta comunidade. Felicidades.

4 comentários:

  1. Lembranças, lembranças...como é bom ler, reler este escrito da Fatinha. Este pessoal também se adentrava na minha casa, que vivia com as portas abertas.
    Sabe porque estas pessoas passavam e ficavam em nossas casas: porque nossas mães, avós eram muito amáveis, caridosas e acolhiam estes pobres coitados com um carinho especial.
    Tínhamos sim muito medo, mas com tudo isso Fatinha hoje aprendemos que amar é se doar por inteiro..
    Obrigada pelo escrito e continue...Não pare não!

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  2. Descobri hoje esse blog e estou encantada. Me deu uma nostalgia danada! Nasci aí pertinho, em Conceição da Aparecida e com 08 anos mudei-me para a região de Campinas, nos idos de 1976. Lembro-me com carinho das montanhas, do aconchego, do povo acolhedor. Lembro-me de uma senhora que morava no Cavaco e que volta e meia passava pela fazenda Córrego Grande, onde eu morava, pedindo esmolas. Chamava-se Conceição Cascuda, mas minha mãe sempre me orientava a não chamá-la pelo feio apelido. Mas eu, criança inocente, um dia perguntei à minha mãe na presença da senhora se era a ela que não podíamos chamar de Conceição Cascuda. Lembro-me do olhar de fúria de minha mãe até hoje. Minha irmã mais velha voltou para Barro Preto mês passado e está muito feliz. Quem sabe um dia também eu faço o caminho de volta? Obrigada por compartilhar tantas histórias, confesso que fiquei com lágrimas nos olhos com algumas. Ana

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  3. Ana, obrigada por compartilhar conosco suas lembranças. Continue mandando outras. Conta também quem são seus pais, avós, parentescos no Carmo. Criança é assim mesmo, inocente, não é? Faça o caminho de volta pelo menos visitando o Carmo, que está cada vez melhor. Continue visitante este blog, que foi feito para todos nós.

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  4. Verdade, Cecília, nossas casas eram verdadeiras mães porque ali habitavam verdadeiras mães.

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